Uma das faces da discriminação contra pessoas com algum tipo de deficiência é o capacitismo. Essa crença social discriminatória define esses cidadãos como “incompletos”, portanto, “menos aptos” a executar funções e “menos capazes” de gerir a própria vida. Esse conceito se baseia na ideia de inferiorização, sendo construído a partir de uma ideologia produtivista — que estabelece valor e padrão para o ser humano, julgando-o mediante a aptidão para lidar com ferramentas, estratégias e meios de produção massificados.
Essa classificação é, no cerne, um preconceito ao considerar incapazes os indivíduos com alguma deficiência física ou intelectual. Como destruir os alicerces que sustentam as sociedades capacitistas? Combater as desigualdades estruturais de oportunidades e acesso pode ser uma das atitudes mais poderosas e eficazes. E quando falamos de pessoas com deficiência auditiva, um dos passos fundamentais para uma sociedade mais inclusiva passa por quebrar as barreiras de comunicação.
Para se ter noção da importância de criar pontes para a comunicação, remeto às pessoas que estão atrás dos números. Mais de 5% da população mundial — cerca de 466 milhões de pessoas — têm deficiências auditivas, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS); desses, 34 milhões são crianças; 80% dos surdos têm dificuldades com línguas escritas e dependem da língua de sinais para se comunicar e obter informação.
No Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 10 milhões de cidadãos têm algum tipo de deficiência auditiva. A OMS estima que, em 2050, cerca de 900 milhões de pessoas poderão ter surdez.
Norteados pela missão de tornar o mundo mais inclusivo, aproximando surdos e ouvintes, os empreendedores Ronaldo Tenório, Carlos Wanderlan e Thadeu Luz criaram, em 2012, a Hand Talk — um negócio de impacto social que desenvolveu um aplicativo para tradução de língua portuguesa para a língua brasileira de sinais (libras). Já são mais de 3,5 milhões de downloads e mais de 12 milhões de traduções mensais.
Em junho de 2020, o aplicativo — que em 2013 foi eleito o Melhor Aplicativo Social do Mundo pela Organização das Nações Unidas (ONU) — deu mais um passo rumo à defesa da inclusão: iniciou o processo de internacionalização ao disponibilizar, também, a tradução de textos e áudios em inglês para a língua americana de sinais (ASL).
Um dos equívocos mais comuns é acreditar que todas as pessoas surdas utilizam a mesma língua de sinais no mundo. Existem centenas de tipos de línguas de sinais ao redor do globo, que levam em consideração a cultura e a identidade de cada lugar. Estima-se que a ASL seja usada por 2 milhões de pessoas apenas nos Estados Unidos. Para viabilizar a expansão, a empresa contou com um time de especialistas no idioma. Esses profissionais atuaram em sistema colaborativo, no qual gravaram e etiquetaram vídeos dos sinais e sentenças, melhorando a tradução e construindo um vocabulário abrangente.
Os dados compilados foram insumos para o sistema de inteligência artificial. Além do aplicativo que faz tradução de textos e áudios, a startup Hand Talk também conta com um plugin de acessibilidade para sites — ferramenta prática que torna o ambiente online acessível: ao ativar o tradutor, o usuário é apresentado a Hugo, um simpático intérprete que traduz os textos dos websites para libras.
A inclusão ampla e feita com respeito às diferenças é o caminho que devemos trilhar. É um processo complexo que altera a cultura da sociedade. É, acima de tudo, um ganho para a humanidade e uma contribuição direta para criarmos uma sociedade mais igualitária por meio da acessibilidade e da inovação social.
Maure Pessanha é empreendedora e diretora-executiva da Artemisia. Texto publicado originalmente no Blog do Empreendedor — Estadão PME.
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