Negócio antecipa recebível performado com alto impacto social em uma das populações mais vulneráveis da sociedade
Luciano Gurgel
Há um consenso no Brasil de que entre as três letrinhas mágicas que têm sintetizado a responsabilidade corporativa, o ESG, a mais difícil de se cumprir é o S de social.
Gestores de grandes empresas se perguntam se não bastam os impostos que são pagos pelas corporações para que o governo cuide das pessoas à margem da sociedade. Outras se questionam: “E aquela ONG que rendeu boas fotos no último ano, será que não repetimos a dose para ‘cumprirmos a cota’?”
Quando pensamos nas instituições financeiras, a missão de concretizar o S fica ainda mais difícil, sobretudo pelo desafio de fazer com que a atuação, que é muito associada à cobrança de juros extorsivos, seja vista como de impacto social positivo.
A despeito de todos os obstáculos, têm surgido iniciativas consistentes que mostram como o S pode se tornar tangível no mundo das finanças.
Uma delas está sendo liderada pela Articuladora de Negócios de Impacto de Periferia (ANIP), iniciativa conjunta de A Banca, FGVcenn e Artemisia, com apoio da Fundação Arymax, da Fundação Tide Setubal, do Instituto humanize e do Instituto Sabin, que concluiu uma transação envolvendo a concessão de um empréstimo de longo prazo utilizando o racional do capital paciente à Trampay.
A Trampay é um negócio social que tem como principal linha de atuação a antecipação do faturamento de entregadores por aplicativos. É uma ferramenta de engajamento de informais, focada em melhorar a qualidade de vida no trabalho de entregadores e motoristas de aplicativo.
Entregadores por app trabalham uma quinzena inteira e, no dia seguinte, têm o faturamento totalizado. O valor devido é pago dez dias depois desta totalização. Por exemplo: todas as entregas realizadas do dia 1º ao 15 de cada mês são totalizadas no dia 16 –e o entregador só recebe o valor correspondente no dia 25. Todo o valor gerado do dia 15 ao 31 é totalizado no dia 1º e recebido no dia 10. Ou seja, o entregador fica, todo mês, com um desencaixe de pelo menos dez dias entre o faturamento gerado e o recebimento na conta.
Com a solução da Trampay, o entregador recebe hoje o que trabalhou ontem. Esse valor antecipado faz com que despesas básicas ou inesperadas desses trabalhadores não sejam mais uma preocupação. Trata-se de uma antecipação de um recebível performado com alto impacto social em uma das populações mais vulneráveis da sociedade.
Dados do Ipea — Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2021 mostram que 1,5 milhão de brasileiros trabalham por meio de aplicativos de entrega ou transporte. A maioria desses trabalhadores é homem, preto ou pardo. Entre motociclistas que fazem entregas, o rendimento é de aproximadamente R$ 1.500 por mês, com jornadas de trabalho extensas que podem chegar a 18 horas por dia. Há, ainda, o risco de rendimentos negativos. Estamos, portanto, falando de uma população realmente à margem da sociedade e que, na maioria das vezes, só executa essa atividade profissional por falta de opção.
E isso implica algumas dificuldades práticas. Às vezes, falta dinheiro para abastecer o tanque da moto, trocar um celular ou carregador, comprar medicamentos ou mesmo se alimentar. Ou seja, falta o financiamento do ‘capital de giro’ para o entregador. Aquele capital que faz a roda da atividade girar. O interessante é que a operação de antecipação do faturamento do entregador é de baixíssimo risco de crédito. O faturamento já foi realizado, o que no jargão do mercado financeiro é chamado de recebível performado.
O risco do financiador desta operação é que o aplicativo ou que os operadores logísticos, que às vezes se posicionam entre os apps e os entregadores, não paguem o valor trabalhado e faturado. Risco baixíssimo tendo em vista o perfil de crédito dos aplicativos de entrega. A operação de crédito à Trampay realizada pela ANIP visou ao reforço de caixa para a empresa, permitindo aumentar os recursos à disposição dos entregadores e melhorando as condições de trabalho.
Na primeira rodada serão quase 900 entregadores beneficiados com a antecipação dos rendimentos e, ao cabo da operação, por volta de 20 mil beneficiados. A magia desses números acontece pela lógica do crédito rotativo, no qual recursos podem ser reciclados e beneficiar diversas pessoas.
Com a operação de financiamento da Trampay, entendemos que estamos –ANIP, Artemisia e demais parceiros– contribuindo para mostrar que podemos, por meio da lógica do mercado e do mundo dos negócios, apoiar setores mais fragilizados da sociedade. Viabilizando recursos que se reciclam e que permanecem gerando impacto social positivo enquanto estiverem disponíveis.
- Luciano Gurgel é bacharel em economia pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor-executivo da Artemisia. Texto publicado originalmente na Folha de S.Paulo.