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Falta de valorização profissional e o racismo no ambiente corporativo são fatores decisivos para pessoas negras abrirem o próprio negócio, diz pesquisa
Para além de ser meramente uma maneira de as pessoas ganharem dinheiro, o empreendedorismo é, sobretudo, uma atividade que oferece oportunidade de modificar vidas. No imaginário popular, empreender é uma prática que aponta para um horizonte de sucesso e ascensão social, entretanto, diante dos desafios e das urgências cotidianas, a imagem idealizada de ter o próprio negócio está muito distante da realidade.
Essas são algumas das percepções de empreendedores e empreendedoras captadas pela pesquisa #CoisaDePreto: Um estudo sobre a real jornada de afroempreendedores brasileiros, conduzida pela Box1824 e Google, divulgada em outubro de 2022. O levantamento — desenvolvido para gerar uma compreensão mais aprofundada da realidade e das demandas específicas dos afroempreendedores brasileiros — ouviu mil pessoas (500 brancas e 500 negras).
Na análise da amostra formada por afroempreendedores, a pesquisa mostrou que entre os que têm o negócio como única fonte de renda, quase 65% possuíam carteira assinada antes de abrir o empreendimento. A experiência negativa com o mundo de trabalho e a falta de oportunidades para ascender na profissão, ou seja, ocupar postos de liderança, foram fatores motivadores para a decisão de empreender.
A pesquisa aponta, ainda, outros elementos decisivos para trocar o emprego formal pelo negócio próprio, como a falta de valorização profissional e o racismo no ambiente corporativo. Os dados sobre as mulheres negras revelam que 40% das entrevistadas creditam a decisão de empreender a experiências ruins que tiveram como funcionárias de empresas ou instituições. Podemos entender que a cor da pele (a discriminação sofrida pelos empreendedores negros) é um fator determinante para a decisão de empreender.
Óbvio que todos os afroempreendedores entrevistados sabem que o ato de abrir um negócio não elimina o racismo estrutural que sofrem cotidianamente, mas eles afirmam que o desafio da mobilidade na carreira — aquela dificuldade de ascender a postos de comando — fica mais distante à medida que constroem o próprio negócio.
Essa virada de chave, associada também à realização de um sonho, passa por uma série de questionamentos mediados por uma pergunta norteadora: será que levo jeito para a coisa? Ou seja, tenho talento nato para empreender?
Sobre os desafios enfrentados, 28% dos afroempreendedores afirmam que um dos maiores é conseguir crédito e financiamento (para os brancos, esse índice é de 21%); 55% de negros e negras das classes D e E entrevistados apontam que não ter uma referência empreendedora na família tem um peso negativo; 55% das mulheres negras dizem não contar com ajuda na gestão do negócio.
Há, ainda, outros obstáculos de raiz estrutural para os afroempreendedores como a falta de conhecimento sobre gestão e mecanismos de crédito e financiamento. Em contrapartida, 75% deles se orgulham da trajetória empreendedora.
A pesquisa traz tantos aprendizados, que são impossíveis detalhá-los em uma única coluna. Mas, antes de finalizar este artigo — e sugerir a leitura na íntegra do mapeamento -, gostaria de destacar que, na trajetória de afroempreendedores, há dilemas que funcionam como “muros invisíveis” que dificultam o desenvolvimento dos negócios de afroempreendedores.
O mapeamento identifica cinco:
- muro da decisão: se a decisão de empreender já é difícil para a maioria das pessoas, para negros e negras é ainda mais desafiadora, sobretudo diante da falta de mobilidade e perspectiva de carreira;
- muro do desconhecimento: a insegurança de navegar em um mundo novo e sem o conhecimento que apoie as decisões do negócio é assustadora;
- muro da superação: manter a cadeia funcionando, gerir o caos e enxergar todos os pontos de atenção são desafios enormes;
- muro da solidão: constatar que todos os planos de sustentabilidade do negócio dependem de uma única pessoa mostra a face mais solitária do ato de empreender;
- muro da prosperidade: crescer envolve ter acesso a investimentos, algo que para negros e negras permanece como um impeditivo para prosperar.
Escolher falar sobre o afroempreendedorismo nesta coluna, adotando um viés psicossociológico, tem uma razão de ser. Acredito que há muita idealização nos escritos e no pensar sobre o empreender; a lente usada para enxergar o empreendedorismo brasileiro, muitas vezes, distorce a realidade.
Analisar o fenômeno de empreender (posto que não é uma ciência exata) — com base em escuta ativa, pesquisas bem fundamentadas, adicionando a dimensão psicológica e social dos empreendedores de base — nos auxilia a compreender as nuances desse enorme desafio e nos inspira a criar caminhos possíveis para endereçar soluções reais, honestas e práticas para apoiar empreendedores e empreendedoras.
A responsabilidade de criar um ambiente de excelência não é exclusiva do indivíduo que empreende, mas de todo um ecossistema que o envolve, que inclui os diversos elos do campo de empreendedorismo. É necessário que vários atores sociais atuem para garantir boas condições para que os empreendedores — e afroempreendedores — possam se desenvolver.
*Maure Pessanha é empreendedora e presidente do Conselho da Artemisia. Texto publicado originalmente no Blog do Empreendedor — Estadão PME.
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