Artemisia

Os gatos pardos na noite dos investimentos

O fato de que ainda temos fome no mundo e que para erradicá-la bastaria 10% dos recursos investidos em ativos chamados ‘sustentáveis’ nos dá bem a medida de quanta luz ainda precisamos.

Diz um ditado que à noite todos os gatos são pardos. É a velha sabedoria popular, explicando que a definição exata do objeto de análise está condicionada às circunstâncias de momento de quem o observa. Um artigo publicado recentemente pelo Fórum Econômico Mundial, How sustainable investments will become de the norm (Como os investimentos sustentáveis vão se tornar a norma, em tradução livre), aponta que há uma tendência clara de que os investidores levarão cada vez mais em consideração aspectos de sustentabilidade ambiental, responsabilidade social e de governança nos processos de investimento. Não há como não ficarmos animados com essa notícia trazida como uma verdadeira profecia de bons tempos e impossível não lembrar uma frase de Gandhi que defendia que deveríamos ser a mudança que queremos ver no mundo.

A ideia deste artigo é lançar um pouco de luz na “noite dos investimentos”. O texto publicado pelo Fórum Econômico Mundial cita uma série de dados como ativos sob gestão dos fundos “responsáveis” (o famoso AUM ou Asset Under Management), medida principal de relevância dos gestores de recursos, distribuição geográfica dos ativos desses fundos e, talvez, o mais interessante, uma abordagem sobre a definição fluida dos investimentos sustentáveis. De acordo com a análise, os investimentos sustentáveis cresceram de US$ 30,7 trilhões em 2018 para US$ 35,3 trilhões em 2020. Uma soma de recursos incrível que deveria ser suficiente para eliminar alguns dos problemas mais urgentes da humanidade, não? Vejamos…

Segundo o relatório do Programa Alimentar Mundial e do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola — produzido pela FAO, a Agência das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, e divulgado em 2015 –, seriam necessários US$ 267 bilhões por ano, durante o período de 2015 a 2030, para erradicar a fome no mundo. A multiplicação simples mostra que pouco mais de US$ 4 trilhões seriam suficientes para acabar com a fome no mundo em 15 anos. Oras, mas se em 2020 havia US$ 35,3 trilhões sob gestão em “ativos responsáveis”, fica a pergunta: qual medida pode ser mais responsável do que destinar pouco mais de 10% dessa dinheirama para resolver um dos problemas mais alarmantes da nossa modernidade, seriamente agravado pela pandemia?

Uma das respostas para essa aparente incoerência nos leva ao segundo dado impressionante trazido pelo artigo do Fórum Econômico Mundial: a distribuição geográfica dos recursos em investimentos responsáveis. De acordo com a análise, 48% destes ativos estão nos Estados Unidos, 34% na Europa e 8% no Japão. Ou seja, pelos dados compilados, 90% dos gestores de recursos destinados a investimentos sustentáveis estão sentados em países onde há menos fome ou demais problemas sociais em comparação com outras nações. Lógico que esses recursos não são totalmente destinados a ativos sediados no local dos gestores. Mas é de se perguntar se a velocidade dos passeios internacionais dos recursos dos investimentos sustentáveis é tão alta quanto a dos ativos tradicionais que giram o mundo num clicar de tecla de um terminal da Bloomberg.

Será que está claro para estes gestores — que estão sentados em Londres, em Nova York ou em Tóquio — que, como disse Melinda Gates em sua Carta Anual: “um vírus em algum lugar é doença em todos os lugares?” Quais seriam as metas geográficas de distribuição de recursos para que esses fundos possam realmente ser classificados como sustentáveis?

Por fim, o último tópico do artigo que chama bastante a atenção é acerca da definição fluida dos investimentos sustentáveis. De uma maneira geral, esse dilema pode ser resumido numa pergunta que tem se repetido muito nos círculos de investimentos: “Estou causando menos danos ou fazendo o bem?”.

Trata-se da discussão em torno da alocação de recursos em medidas compensatórias ou regenerativas versus as alocações em medidas que resolvem os problemas da sociedade — independentemente de quem os tenha causado. Os primeiros ativos têm abocanhado a maioria dos bolsos dos investidores, porque exigem uma concessão mínima e prometem apenas somar a responsabilidade socioambiental — algo que fará todos dormirem bem com suas consciências, sem obrigar uma mudança estrutural de comportamento investidor. Os segundos são mais complexos. Exigem uma mudança de comportamento e pensar fora da clássica matriz risco versus retorno para encarar os desafios de compreensão de uma matriz risco versus retorno versus impacto.

O fato de que ainda temos fome no mundo — e que para erradicá-la bastaria 10% dos recursos investidos em ativos chamados “sustentáveis” — nos dá bem a medida de quanta luz ainda precisamos jogar na noite escura dos investimentos para distinguir a cor dos gatos. À noite, por enquanto, todos parecem pardos.

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