Artemisia

Nossa constante busca por heróis é uma tragédia contemporânea

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A história mostra uma atração incrível da humanidade por heróis. Mitos e arquétipos criados ao longo dos séculos sempre nos contam que de tempos em tempos surge alguém provido, divinamente, do dom de salvar o mundo. Dizia o poeta Gil, “quem sabe, o super-homem venha nos restituir a glória, forjando como Deus o curso da História…”

O mito do herói permeia, de forma inconsciente, muitas faltas de atitude da nossa parte. É uma baita alegoria de um pensar que resulta em uma tragédia contemporânea. Queremos derrotar a inflação com uma solução milagrosa. Queremos que o nosso presidente seja um salvador da Pátria — se possível, que tenha dons messiânicos. Nossa seleção e nossos times do coração, então, têm de ter sempre o craque que se sobressai, aquele que é mais importante do que um coletivo que funcione bem.

Enfim, em diversos aspectos da nossa vida nos deparamos, frequentemente, com a ideia de que não precisamos fazer muita coisa pelo progresso pessoal ou pela sociedade. Basta aguardar que há de vir aquele que nos redimirá, restaurando a “justiça”.

Quando aterrissamos essa conversa para os graves problemas sociais e ambientais que afligem o país, o cenário não é diferente. Apaziguamos nossos medos e nos tranquilizamos ao sabermos da existência de uma liderança religiosa — ou comunitária — que unifica os esforços no trabalho com as populações mais fragilizadas da sociedade. Nós nos sentimos tranquilos e com a sensação de dever cumprido quando aportamos recursos — doações — às organizações idôneas conduzidas por tais lideranças. Alguém sério está fazendo o trabalho por nós.

Caso seja questionada, a imensa maioria das pessoas responderia que adoraria dormir melhor, ter uma vida mais saudável, ser mais feliz, enfim. Mas, também, a imensa maioria estaria pouco disposta a mudar os próprios hábitos de alimentação — ou de comportamento — para atingir essas metas. As pessoas ficariam satisfeitas se pudessem simplesmente tomar um comprimido para conquistar o que almejam. Se possível, em dose única diária. Uma solução mágica e única! Isso talvez explique as assombrosas taxas de medicamentalização da sociedade.

Com a lente de leitura ajustada ao tema dos problemas sociais e ambientais brasileiros, demos passos enormes nos últimos tempos no entendimento, como sociedade, de que a responsabilidade por resolver esses problemas não pode recair unicamente sobre as costas do Estado. Mas, ainda não demos o passo seguinte; continuamos acreditando em heróis que façam o trabalho que deveria ser feito por todos nós. O Estado passou o bastão de “ente salvador” aos heróis do momento.

Investe-se em um fundo com três letras mágicas e, de repente, entende-se que está cumprida a responsabilidade socioambiental e de governança do investidor. Injeta-se capital de equity em uma startup de impacto e se espera, passivamente, que esta um dia vire o unicórnio que, de uma só vez, resolverá um problema socioambiental e tornará a si e aos seus sócios bilionários.

O ponto é que, como sociedade, escolhemos um ou dois (no máximo uma mão cheia) líderes comunitários ou religiosos sérios como destinatários de importantes recursos de doações para as emergências sociais. A partir dessa identificação dos eleitos para a missão, os doadores dormem o sono dos justos, destinado àqueles que aceitaram contribuir com o seu quinhão.

Mas, será que, ao final das contas, estamos de forma séria e comprometida contribuindo para a solução dos problemas? Ou será que o principal desafio que estamos enfrentando é o nosso próprio problema de consciência? O campo dos negócios sociais oferece exemplos importantes sobre como adotar uma postura realmente engajada pode ser transformador para quem quer contribuir na resolução de graves mazelas da nossa sociedade.

Alguns exemplos: que a doação seja acompanhada de prestações de contas e de planos de evolução; que os investimentos sejam acompanhados de suporte não financeiro; que inúmeros negócios sociais trabalhem pela resolução de um problema. Em outros termos, que não seja depositada toda a responsabilidade e expectativa pela solução de um problema em apenas um empreendedor; que um “herói” não seja predestinado ou destinado a criar uma solução para resolver um determinado problema.

A estratégia que defendo é outra: investirmos em ações diversas para um agir sistêmico. Que recursos sejam mobilizados — financeiros e de capacitação — a uma série de iniciativas. Entre elas, os negócios de impacto. Não será com “heróis predestinados” que encontraremos as soluções para problemas estruturais e seculares no nosso país, mas com o engajamento comprometido e contínuo. O campo dos negócios sociais é uma boa mostra sobre como trilhar este caminho.

*Luciano Gurgel é diretor-executivo da Artemisia. Artigo publicado originalmente no UOL Ecoa, em agosto de 2022.

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